Carta aberta à revista Veja
Prezados,
li com atenção à reportagem publicada na edição desta semana de "Veja", intitulada "A Pedagogia do Garfield", sobre a presença de questões de literatura na prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), elaborado pelo governo federal.
Afora a validade e a pertinência da pesquisa realizada por docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), parece-me haver alguns equívocos na leitura do estudo e na forma como foi comparado com as histórias em quadrinhos.
A respeito da leitura dos dados, a revista diz que "a literatura está virtualmente ausente do Enem" e que o importante para o jovem que presta a prova "é saber interpretar uma história em quadrinhos". Há, nisso, uma interpretação errônea do estudo, cujas conclusões são reproduzidas pela própria publicação.
Tabela apresentada na reportagem dá conta de que o Enem pautou seus enunciados em textos de poesia (58 questões), crônica (21), romance (20), conto (5) e drama (1). O total, portanto, chega a 105 questões sobre gêneros literários, número maior que os demais itens, histórias em quadrinhos (32), crítica (21) e canção (14).
Logo, há presença, sim, de literatura no exame, ao contrário do que sugere a reportagem. E presença três vezes maior que o volume de histórias em quadrinhos.
Deve-se concordar, no entanto, com a interpretação de que romancistas importantes de nossa literatura - e o romance em si - tenham sido pouco ou quase nunca trabalhados em questões da prova. Isso se configura um ponto a ser reavaliado pelos responsáveis pelo Enem. Mas dificilmente irá gerar no ensino médio o desaparecimento da literatura caso a situação assim continue, como indica uma das entrevistadas da matéria.
O outro ponto da reportagem que nos parece carecer de ajuste é no tocante à forma como a pesquisa foi comparada com as histórias em quadrinhos. Há dois aspectos a serem observados sobre isso.
O primeiro é que se trata de analogias distintas. A literatura é composta de diferentes gêneros, como bem ilustra a arte que compõe a matéria e já citada nesta carta. O mesmo vale aos quadrinhos. Estes possuem uma gama ampla de gêneros, como as tiras cômicas, as histórias infantis, as de super-heróis e as reportagens em quadrinhos, para ficarmos em quatro exemplos.
Vê-se, portanto, que comparar cinco gêneros literários (poesia, crônica, romance, conto e drama) com um rótulo que abriga diferentes outros gêneros, caso dos quadrinhos, configura algo inarticulável e, por consequência, nubla uma eventual tentativa articulação dessa ordem.
O segundo aspecto a ser observado no tocante à forma como os quadrinhos foram trabalhados na matéria é a sugestão de que exista uma hierarquia de leituras, na qual tiras como "Garfield", "Mafalda" e "Hagar" - todas usadas no Enem - estariam num grau de complexidade e qualidade inferior ao literário. Isso fica expresso na matéria em trechos como:
- "A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos - o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia (veja o quadro abaixo) -, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem."
- "Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem."
- "O Enem contribui para construir um país mais iletrado."
Há um explí
cito tom de espanto da reportagem tanto sobre o volume de questões pautadas em histórias em quadrinhos (32) quanto pelo conteúdo por estas apresentado, que ajudaria a construir um país "iletrado".
Uma vez mais, são comparações de ordens diferentes. Não se pode atribuir ao pouco volume de questões sobre romances e seus autores à pura presença de questões sobre quadrinhos que, reitera-se, aparecem em menor número que as literárias.
Existem pesquisas que comprovam o volume de informações a serem acionadas pelos leitores no processo de construção de sentido de uma tira cômica, como as elencadas pela reportagem e trabalhadas no Enem. Ler um texto assim, verbal escrito e visual, integra a Lei de Diretrizes Básicas da Educação e as orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), ambos instaurados no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Pertence aos PCN também a nomenclatura "Linguagens, códigos e suas tecnologias", usada para o ensino médio e que causou outro estranhamento exposto na reportagem ("... podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e suas tecnologias)".
Nesse ponto, o Enem acerta. As histórias em quadrinhos, em seus diferentes gêneros, configuram um texto peculiar para a produção do sentido, por conta da articulação entre imagem e palavra . Tal articulação soa simples, mas não é.
No Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) aplicado em 2007 a alunos do terceiro ano do ensino médio, 78,8% dos estudantes tiveram rendimento "abaixo do adequado", ou seja, inferior ao esperado para a série que cursam, em uma prova que contava com uma tira de "Hagar, o Horrível" entre as questões, mesmo personagem e série utilizado no Enem.
Não é de estranhar que vestibulares importantes, como o da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), valham-se do recurso das tiras para compor suas questões (no caso da Unicamp, elas estão presentes desde 1990). As capacidades esperadas do aluno estão não apenas na articulação entre imagem e palavra, mas na construção do sentido de humor pretendido a partir delas.
É de suma importância o levantamento feito pelos docentes da UFRGS e trazido a público por "Veja". Mais do que uma pesquisa, trata-se de um alerta sobre os rumos como a literatura vem sendo trabalhada num dos principais mecanismos de seleção ao ingresso universitário vigentes no país e que carece de constante leitura crítica.
Mas não se pode atribuir aos acertos do exame uma suposta culpa pelos equívocos. Literatura e quadrinhos são produções textuais de diferentes ordens, com distintos gêneros autônomos, cada um igualmente válido e com peculiaridades próprias no processo de construção do sentido. Espera-se que o estudante brasileiro seja proficiente nesse processo plural de leitura.
Sem mais,
Paulo Ramos
Jornalista e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo
Jornalista e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo
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